Depois
de um longo e tenebroso inverno eu resolvi reativar este blog,
atendendo, principalmente, a um (vários) pedidos (pedidos? haha!) da
Lolinha, minha esposa, que não entendia o motivo da infindável
hibernação. Como alguns devem saber ela é a responsável pelo blog Escreva Lola Escreva, o maior blog feminista do Brasil. Para reiniciar, ela sugeriu um post que eu fiz recentemente para o seu blog, falando sobre xadrez sob uma perspectiva de gênero. Essa é a minha visão sobre o tema, construída ao longo de quase 50 anos vivendo como jogador, treinador, técnico e estudioso de xadrez. A partir de agora, pretendo fazer pelo menos um post semanal aqui no blog.
O ambiente enxadrístico não é exatamente amistoso, particularmente se o adversário for do sexo feminino.
O
jogo de xadrez, entretanto, apesar de dominado pelo sexo masculino
(rei, bispos, cavaleiros, soldados/ peões), é comandado não pelo Rei,
que é tratado como alguém muito mais frágil do que importante, e sim
pela Dama/ Rainha –- esta sim a peça mais poderosa do jogo. Mas nem
sempre foi assim.
O
xadrez foi criado por volta do ano 600 d.C., provavelmente como uma
luta simbólica entre exércitos (primeiramente quatro e depois dois), e
reproduzia os elementos guerreiros da época, de ataque e de defesa:
reis, conselheiros, torres, cavalos, elefantes (pois a origem do jogo
foi na Índia) e soldados/ peões. Na época, não havia o elemento feminino
nas batalhas.
Ao
longo do tempo, devido ao comércio e às invasões, o xadrez foi sendo
popularizado no resto da Ásia, norte da África e Europa (lembrando que
os mouros invadiram a península ibérica e lá permaneceram por 800 anos),
onde o sistema feudal passou a ser representado. Isso incluía a rainha,
que, no entanto, tinha uma movimentação bastante modesta: só se movia
uma casa na diagonal, o que a tornava uma das peças mais fracas,
superando apenas o peão. A Igreja, que também tinha exércitos e
guerreava (os papas iam literalmente às guerras), passou a ser
representada. E o elefante (que era desconhecido pelos europeus) foi
substituído pelo bispo ou pelo bobo da corte (ou mensageiro do rei).
A
promoção do peão [para quem não conhece as regras, quando um peão
alcança a oitava casa, ele deve ser trocado pela peça que o jogador
quiser, exceto rei e peão] também teve seus problemas: entre os
muçulmanos, a quem era permitido ter várias esposas, promover o peão à
dama não criava conflito.
Mas
entre os cristãos, a existência de uma nova rainha, estando a original
ainda no tabuleiro, não devia ser admitida. Assim o peão só poderia ser
promovido à dama se essa já não estivesse no tabuleiro [hoje isso não
mais existe. Na teoria, pode haver nove rainhas brancas ou negras no
tabuleiro, ou seja, cada um dos oito peões podem virar rainha].
Mas
de onde veio a atual força da rainha? Na vida real, quando um rei se
ausentava ou morria, deixava um herdeiro do trono que com frequência era
uma criança.
Muitas
vezes quem assumia o poder de fato era a rainha, até que o príncipe
herdeiro tivesse idade suficiente para governar. Segundo Marilyn Yalom,
pesquisadora de gênero e autora do excelente livro Birth of the Chess Queen
(Nascimento da Rainha de Xadrez), algumas dessas rainhas se tornaram
extremamente poderosas, como Adelaide, esposa de Oto I em 950, com quem
construiu o grande reino ítalo germânico.
Após
a morte de Oto I, Adelaide manteve forte influência sobre o novo
soberano, seu filho Oto II, até ele se casar com a princesa Teofânia
Escleraina, que impôs o exílio a Adelaide. Teofânia, após a morte de Oto
II, assumiu com mãos de ferro o poder, como regente de seu filho Oto
III, chegando a assinar documentos como Imperator Augustus ao invés de
Imperatrix Augusta. Com a morte de Teofânia, Adelaide voltou do exílio e
tornou-se a regente de seu neto Oto III até sua maioridade em 994.
Marilyn Yalom, historiadora |
Tanto
Teofânia como Adelaide podem ter sido o modelo para a rainha no xadrez.
Mas foi em 1497 que foi observado no livro de Luis Ramírez de Lucena
sobre o jogo de xadrez que os movimentos das peças já eram idênticos aos
de hoje, com pequenas modificações. No entanto, a grande transformação
no jogo foi o enorme aumento do raio de ação da rainha -– que levou o
jogo a ser chamado de “a dama louca” por aqueles que se opunham a tanto poder feminino.
Inúmeras
rainhas de carne e osso jogaram xadrez durante centenas de anos. Mas,
no século 17, elas saíram de cena. Para Yalom, talvez isso tenha
acontecido porque, com as mudanças das regras (a própria dama ficando
mais forte), o jogo ficou mais agressivo e passou a ser jogado em espaços públicos, vistos como não apropriados para mulheres.
O jovem Bobby Fischer e sua irmã Joan |
Nos 300 anos seguintes, o universo do xadrez ficou amplamente dominado pelos homens. Por que isso?
Lógico
que os misóginos (incluindo um dos maiores campeões de todos os tempos,
Bobby Fischer, cuja irmã lhe ensinou a jogar) diziam (e ainda dizem,
como o fez o britânico Nigel Short há dois anos) que os cérebros eram diferentes, ou que mulheres não têm as mesmas capacidades intelectuais.
Besteira. Um estudo de 2013
revelou que meninas de 6 anos já estão cientes do estereótipo de que
"bons jogadores geralmente são meninos". Isso afeta como elas jogam.
O seguinte experimento foi realizado recentemente para identificar o grau de ação de estereótipos de gênero:
42 jogadores foram emparceirados, dois a dois, homens contra mulheres,
levando em consideração a sua força aproximada. Jogaram pela internet,
sem saber de que gênero era o seu adversário. O resultado final foi equilibrado.
"Claro que não", diz o subtítulo |
Quando refizeram o teste, desta vez informando o gênero do adversário, a performance feminina caiu em quase 50%.
Isso
mostra que a capacidade dos dois gêneros para o xadrez é, pelo menos em
média, equivalente, mas que o resultado pode ser afetado se os
jogadores sabem contra quem estão jogando. O principal motivo da
"superioridade" masculina no xadrez é, no entanto, estatístico: há muito
mais homens jogando do que mulheres.
Outra
situação interessante foi a análise das gigantescas bases de dados de
partidas de xadrez (feita na Califórnia) em que se constatou que
jogadores homens mudavam seu estilo ao enfrentar mulheres e passavam a
jogar de forma muito mais agressiva do que jogavam normalmente contra adversários homens.
O topo da pirâmide dos enxadristas só foi realmente alcançado, até hoje, pela húngara Judit Polgar, que rompeu o recorde
de Bobby Fischer e se tornou a mais jovem grande mestre do xadrez [aos
15 anos e 4 meses, em 1991; já foi ultrapassada pelo norueguês Magnus
Carlsen, que conseguiu a façanha de ser GM aos 13], e esteve entre os dez
jogadores mais fortes do mundo, sempre se recusando a participar de
torneios exclusivamente femininos.
As fantásticas irmãs Polgar em 2012 |
Sua
irmã, Sofia Polgar, hoje afastada das competições, também rompeu a
barreira masculina ao ter um dos ratings de performance mais fortes na
história (de 2879 pontos aos 14 anos, num torneio em Roma). Sua outra
irmã, Susan Polgar -- as três foram fenômenos do xadrez --, foi a primeira pessoa
a conseguir a coroa tríplice, ao ficar com os títulos mundiais de
xadrez Blitz [jogo que dura apenas 3 minutos para cada jogador, com
acréscimo de 2 segundos por jogada], Rápido [o jogo normalmente dura 15
minutos para cada jogador] e tradicional.
Hoje temos uma imensa quantidade de GMs mulheres, mas ainda muito longe
do masculino em quantidade. Entre os cem melhores jogadores do mundo
temos apenas uma mulher, a chinesa Hou Yifan (lembrando que Judit
Polgar, considerada a maior jogadora de todos os tempos, não joga mais).
Minha
experiência de mais de 35 anos como professor e treinador de xadrez
mostra que no início as mulheres dominam o jogo em quantidade e
qualidade. Raras vezes eu tive um aluno que era claramente melhor do que
as meninas. Porém, ao longo do tempo (geralmente perto dos 15 anos), os
meninos continuam a treinar e a competir, enquanto a maioria das
meninas para. As que não param mantem-se no mesmo nível em relação aos
meninos. No entanto, após alguns anos, devido às desistências, o número
de meninos jogando bem já é muito maior.
Minhas
aulas sempre tiveram uma proporção equilibrada entre meninos e meninas,
mas às vezes alguns professores tendem a tratar os meninos e meninas de
forma desigual, desestimulando a participação delas. Competições
femininas separadas (onde fica claro que o motivo é “porque elas são
mais fraquinhas”) também não contribuem para o desenvolvimento no jogo.
Um dos preceitos das irmãs Polgar era só jogar torneios absolutos e,
apesar de não terem se tornado campeãs mundiais absolutas, faziam parte
da elite do xadrez. Esse já é um assunto controverso: existem bons argumentos dos dois lados, um pleiteando que não haja separação, já que tanto os homens quanto as mulheres tem a mesma capacidade. Um outro concorda , em parte, mas previne que as condições extra-tabuleiro, principalmente para as jogadoras mais jovens, geradas pelo comportamento social, podem inibir a performance das jogadoras.
Meu
desejo é que mais e mais meninas aprendam e joguem xadrez, inclusive
profissionalmente. E que não parem de jogar quando crescerem. Quanto
mais jogadoras, maiores as chances que as mulheres se destaquem e conquistem a igualdade também num jogo tão primoroso, em que a peça mais poderosa é a rainha.